Mulheres evangélicas olham para a vida e resistem, mostram as pesquisa eleitorais.


Estas mulheres estão vendo, no seu dia a dia, que o atual governo não oferece muito além de discursos.

05/05/2022 às 10h42

Solidariedade, resistência e coragem são marcas da presença das mulheres na tradição religiosa cristã. Este período pós-Páscoa é sempre inspiração neste sentido. Os escritos da Bíblia relatam que o grupo que acompanhou Jesus à capital Jerusalém – onde ele acabou preso e executado – incluía mulheres. 

Quem caminhou com Jesus sabia que estava se arriscando. Enquanto os seguidores mais próximos estavam escondidos com medo, lá estavam as mulheres. 

Numa sociedade em que a mulher ideal era aquela  que casava, tinha filhos, administrava a casa e se calava, a decisão de seguir Jesus e seu projeto de religião não era fácil. Certamente, aquelas eram mulheres que decidiram não cumprir as regras que lhes estavam destinadas naquele tempo e lugar.

A crucificação servia para intimidar o povo e os seguidores de Jesus. Quem seguisse um crucificado também corria perigo de vida. Quem mostrava simpatia para um crucificado e chorava com ele era preso. Quem enterrasse um cadáver crucificado era castigado. O luto também era proibido. Há relatos de que até pessoas que choravam a morte de um crucificado eram crucificadas como castigo. A morte de um crucificado era para ser solitária.

Para as pessoas que seguiam Jesus, essa ameaça era mais perigosa porque a execução que ele recebeu era a de um criminoso político. A tentativa de enterrar, chorar ou qualquer comportamento que identificasse alguém como integrante do grupo de Jesus era um ato de solidariedade perigoso. Poderia acabar em crucificação.

Quando Jesus foi preso, os seus seguidores fugiram. Pedro, um dos mais destacados, negou que o conhecia. José de Arimateia correu o risco de se solidarizar com um crucificado, mas era pessoa influente e tratou com Pilatos o recolhimento do corpo.

O relato da crucificação, porém, ressalta a solidariedade das mulheres com Jesus. Diz que elas o “olhavam de longe” e assim assumiam grande risco. O verbo original utilizado no texto, no grego theoreo, é traduzido como “olhar” para o português, mas é.mais do que isto: tem o sentido de fixar os olhos (a mente) em alguém, dirigir a atenção a algo, a fim de pegá-lo, ou devido ao interesse nele, ou responsabilidade para com ele. 

O “olhar de longe” das mulheres, no relato da Bíblia, não é uma observação passiva, mas um olhar fixo com a atenção em Jesus, com interesse no que estava acontecendo e revelando responsabilidade para com ele. As mulheres seguiam Jesus com consciência e responsabilidade, e este seguimento significava, para elas, ir até.o fim. Estar junto dele, sofrer a dor de Jesus, assistindo à cena de horror que era a morte de cruz.

Quando o corpo foi colocado no sepulcro, elas continuaram “olhando” e não desistiram. Driblaram as regras e foram até o túmulo para ungir o corpo, seguindo a tradição. O relato dá detalhes das dificuldades, mas, ao mesmo tempo ressalta a persistência e a insistência de quem queria ir até o fim. E isto culminou no testemunho da ressurreição. As mulheres não permitiram que a morte tivesse o poder último. Elas não desistiram. Driblaram o poder que negava solidariedade com um injustiçado. Como canta o poeta: “A estranha mania de ter fé na vida …”Esta história de teimosia, persistência, perseverança e sabedoria me veio à mente quando vi os números da última pesquisa Datafolha sobre a disputa eleitoral que se desenha no Brasil 2022. Realizada em março, a pesquisa mostrou um dado significativo. Primeiramente, a relativização da afirmação de que há um apoio massivo de evangélicos a Jair Bolsonaro. Os números mostram uma divisão neste grupo que representa um empate técnico: 37% optam por Jair Bolsonaro e 34% por Lula.

Ao nos aprofundarmos nesses dados, vemos que há uma diferença entre as escolhas de homens e mulheres evangélicas. Enquanto homens deste grupo religioso preferem Bolsonaro (46% contra 28% que votariam por Lula), as mulheres escolhem Lula (39%, com 30%.optando pelo atual presidente). Estes números se ampliam quando consideradas as mulheres jovens, de 16 a 24 anos, com 50% que optam por Lula contra 22% que votam por Bolsonaro.

As mulheres evangélicas seguem a tendência dos números totais do país pelo Datafolha, que indicam que o gênero feminino prefere Lula (46%, contra 21% que escolheriam Jair Bolsonaro). Os homens evangélicos, mais alinhados ao conservadorismo, divergem do total que apresenta 40% do gênero masculino com Lula contra 31% que votariam pelo atual presidente. 

Espaços como a Plataforma Religião e Poder, do Instituto de Estudos da Religião (ISER),que reúne os dados disponíveis sobre o quadro das religiões no Brasil, e contribui para preencher a lamentável lacuna do Censo 2020, mostram o retrato das igrejas  evangélicas. Este grupo religioso, que representa cerca de 30% da população, é majoritariamente feminino, negro e pobre (metade tem renda até dois salários mínimos). As mulheres neste segmento são 58% e, em algumas igrejas pentecostais, alcançam 69%..

Como estudos publicados pelo ISER e outras instituições mostram, estas pessoas têm suas próprias avaliações da realidade, que resultam de sua vivência cotidiana, e é isto que é determinante nas decisões que envolvem o voto. A maior parte das mulheres tem que se esforçar muito para sobreviver e cuidar de sua família (poucas vezes a tradicional, propagada pelos líderes políticos que assumem um discurso religioso). 

Nesse cuidado está incluida a alimentação, a formação escola  de filhos e delas próprias (com o sonho da universidade), a saúde (também dos idosos que pertencem à família), a segurança (com o pesadelo diário da dúvida se maridos, filhos, irmãos, pais, voltarão para casa, boa parte delas localizada nas periferias de grandes cidades).

“Olhar” (como as mulheres na cruz fizeram) esta realidade significa valorizar o tema “família”, mas, não com a ideia abstrata, moralista, propagada por certos líderes religiosos, dentro e fora do atual governo federal. É entender a dimensão do afeto que envolve famílias, na agregação de pessoas e seus valores, e que mobiliza, especialmente mulheres. Estas têm sobre si a responsabilidade do cuidado com integrantes da família e o peso da insegurança que as atuais políticas públicas, ou a ausência delas, somada à ampla retirada de direitos, à qual assistimos desde 2016, lhes impõem.

Estas mulheres estão vendo, no seu dia a dia, que o atual governo não oferece muito além de discursos. Que o presidente que quer se reeleger é uma pessoa que não .demonstra afeto e respeito pela vida humana. Que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos até se aproxima fortemente das igrejas, com a ministra e pastores que a acompanham, oferece este ou aquele agrado e alguns benefícios que valorizam pessoas comuns. Isto pode até justificar o certo apoio ao atual presidente que aparece nos números. 

Porém, a maioria das evangélicas, ao lado das que professam outras religiões e das que não têm uma, “olham”, na prática, as necessidades, que...só se avolumam, as carências do básico, que se agravam, e a insegurança (alimentar, sanitária, pública), que atormenta cada vez mais. Elas também conseguem “olhar” para o passado, avaliá-lo, e projetar um futuro.

Os grupos que defendem políticas justas, que recuperem direitos retirados e restaurem a possibilidade de vida digna, precisam “olhar” para estas mulheres. Isto significa reconhecer sua importância como pessoas que resistem e subvertem poderes da morte, animadas pela “estranha mania de ter fé na vida”, ouvi-las em suas demandas, medos, esperanças, dar-lhes voz, para construir, com elas, pautas de ação que sejam coladas na realidade, no seu cotidiano.

Fonte: CartaCapital


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