Como uso excessivo de celular impacta cérebro da criança
24/03/2022 às 14h06
O caso de um menino de 13 anos da Paraíba que, no dia 19 de março, confessou ter matado a mãe e o irmão e ferido o pai com uma arma de fogo após ser proibido de usar o celular reacendeu o debate sobre os efeitos que smartphones, tablets e outros aparelhos eletrônicos podem ter na saúde mental de crianças e adolescentes.
Embora esse seja um episódio extremo, especialistas consultados pela BBC News Brasil relatam que é possível notar um aumento nas queixas que chegam até os consultórios relacionadas ao uso excessivo de aparelhos eletrônicos.
Nesta reportagem, mostramos que pesquisa com famílias brasileiras apontou que o uso de dispositivos eletrônicos diminuiu a capacidade de comunicação, de resolução de problemas e de sociabilidade de crianças até 5 anos. E o problema não se limita à primeira infância — o contato excessivo com telas mexe com o cérebro de jovens, que ainda não está suficientemente amadurecido para controlar impulsos, fazer julgamentos, manter a atenção e tomar decisões.
"Faço parte de uma rede de pediatras e médicos de adolescentes e nunca vi tantos relatos de problemas causados pelo exagero na internet, seja nas redes sociais, seja pelos jogos online", analisa a médica Evelyn Eisenstein, que coordena o Grupo de Trabalho em Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
E uma pesquisa feita em 2019 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil dá uma ideia da popularidade das plataformas online entre os jovens do país. O levantamento aponta que 89% da população de 9 a 17 anos está conectada, o que representa 24,3 milhões de crianças e adolescentes. Desses, 95% (ou 23 milhões) usam o celular como o principal dispositivo para acessar sites e aplicativos.
Mas os números que mais preocupam os especialistas vêm a seguir: 43% dos jovens brasileiros já testemunharam episódios de discriminação online. E as meninas são as mais impactadas por conteúdos prejudiciais: 31% foram tratadas de forma ofensiva, 27% acabaram expostas à violência e 21% acessaram materiais sobre estratégias para ficar muito magra.
O levantamento ainda indica que um quarto dos jovens brasileiros consideram que ficam muito tempo conectados e não conseguem controlar muito bem esse período na frente das telas.
Por um lado, é preciso considerar que os celulares fazem parte da rotina e é muito difícil viver sem eles. Inclusive, quando utilizados na medida certa, esses dispositivos trazem mais benefícios que prejuízos.
"Nem tudo é ruim quando falamos dos smartphones. Eles também trazem coisas boas e fazem parte da vivência do que é ser jovem hoje em dia", pondera o psicólogo Thiago Viola, do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul.
Por outro, o exagero faz mal à saúde da mente e do corpo — e os efeitos podem ser ainda mais danosos nas duas primeiras décadas de vida.
"Como tudo, o problema está no excesso e na falta de controle adequado", complementa Viola, que também é professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Entenda a seguir como ficar muitas horas grudado nas telas e nas redes faz mal à saúde de crianças e adolescentes — e o que fazer quando o uso da internet ultrapassou todos os limites.
Problema que vem de berço
Uma cena que se torna cada vez mais comum em shoppings centers, restaurantes e outros espaços públicos é a de um adulto colocando vídeos cheios de estímulos sonoros e visuais na frente de um bebê. A ideia é que a criança fique entretida enquanto os pais ou os tutores fazem uma determinada atividade (como almoçar ou comprar algo, por exemplo).
Os especialistas alertam que exagerar nessa exposição às telas, ainda mais numa idade tão precoce, pode prejudicar o desenvolvimento do recém-nascido.
"Quando os pais fornecem à criança um vídeo no celular ou no tablet, isso ativa as vias de processamento cerebral que são predominantemente passivas", explica o médico Rodrigo Machado, do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
"E esse tipo de atividade passiva ocupa um tempo em que o bebê poderia ser estimulado com atividades mais ativas, que aperfeiçoam a capacidade de coordenação motora e outras habilidades importantes nessa faixa etária."
Uma pesquisa feita pela Universidade Federal do Ceará e pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em parceria com outras instituições, dá uma dimensão do prejuízo que o acesso aos celulares e tablets nos primeiros anos de vida pode trazer.
Os cientistas acompanharam 3.155 crianças cearenses desde o nascimento até elas completarem 5 anos de idade. Eles descobriram que, em média, 69% de todos os participantes foram expostos a um tempo excessivo de tela.
Nos primeiros 12 meses de vida, 41,7% dos recém-nascidos tiveram acesso a vídeos e outros estímulos visuais passivos além da medida, porcentagem que aumenta e bate os 85,2% quando eles chegam aos 4 e 5 anos.
O trabalho ainda apontou que cada hora de uso desses dispositivos eletrônicos diminuiu consideravelmente a capacidade de comunicação, de resolução de problemas e de sociabilidade dos pequenos.
Os autores concluem que "o excesso de exposição às telas é altamente prevalente e esteve associado de forma independente aos problemas de desenvolvimento em crianças menores de 5 anos".
Uma cabeça em construção
Mas o problema não se limita à primeira infância: mesmo crianças um pouco mais velhas precisam ter o acesso limitado e supervisionado ao mundo digital, garantem os especialistas.
Para entender como o contato excessivo com as telas afeta o bem-estar mental dos jovens, é preciso considerar que o cérebro não nasce pronto: ele se desenvolve pouco a pouco ao longo das primeiras três décadas de vida. Algumas partes desse órgão vital só amadurecem completamente quando chegamos lá pelos 25 ou 30 anos.
É o caso, por exemplo, do córtex pré-frontal. Essa região cerebral é responsável, entre outras coisas, por controlar impulsos, fazer julgamentos, resolver problemas, manter a atenção e tomar decisões.
"É por isso que os adolescentes são mais impulsivos e têm esse comportamento típico de explorar e experimentar", relaciona Machado.
"Com o córtex pré-frontal ainda imaturo nessa faixa etária, ficamos mais propensos a buscar o prazer sem pensar em todas as consequências", complementa o psiquiatra.
Agora, imagine o que acontece quando esse cérebro em formação é exposto a um turbilhão de estímulos prazerosos, disponíveis facilmente em qualquer plataforma online.
"Os estudos que analisam o funcionamento cerebral mostram que algumas regiões relacionadas à aceitação do convívio em sociedade ficam muito ativas quando os jovens usam as redes sociais", detalha Viola.
"Se um adolescente posta algum conteúdo, como uma foto ou um vídeo, e começa a receber respostas em formas de curtidas, comentários e compartilhamentos, isso estimula um circuito cerebral relacionado à sensação de prazer e recompensa", continua o especialista.