"O usuário de crack ou está usando a droga ou está trabalhando para usar". Foi assim que Anne Caroline Barbosa, 28, conheceu a reciclagem. O que era um sustento para o vício, no entanto, se transformou em sustento para a família longe das drogas. "Depois que abandonei o vício, comecei a refletir ainda mais sobre a importância da reciclagem. Dava para fazer dinheiro dos resíduos de outras pessoas e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente", conta. Hoje Anne usa as redes sociais para compartilhar tudo o que aprendeu sobre reciclagem desde que começou a trabalhar no ramo em São Paulo. São mais de 36 mil seguidores no Instagram acompanhando as dicas que ela publica por lá. Para Anne.Para Anne, esse é um trabalho de formiguinha. "Só de saber que eu estou mudando essa realidade aos poucos já é muito incrível".
"A sociedade não vê o catador como um profissional. Tem gente que olha para o catador com dó. Mas coitado não é o catador, coitados somos todos que vivemos em uma sociedade cheia de preconceitos".Anne Caroline, catadora de recicláveis.
Um início inesperado Apesar de fazer parte da dinâmica da cidade, como gosta de pontuar, a história de Anne não começa em São Paulo, mas a uma viagem de 17 horas de carro da metrópole paulista rumo à Corumbá, no interior de Mato Grosso do Sul. Foi na cidade de cerca de 64 mil habitantes que Anne nasceu. Cansada da vida monótona que levava por lá, decidiu migrar. "Eu achava São Paulo uma cidade incrível. Não me encontrava na cidade onde nasci, gostava de cidade grande", conta. O desencanto, porém, não tardou a chegar. Anne foi morar na Casa de Apoio Maria Maria, um abrigo no Canindé, na zona leste, até conseguir um emprego em sua área de formação. Mas como designer gráfica, não não conseguiu nenhum trabalho. "Conheci ali o preconceito do mercado de trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade".
Ainda no abrigo, ela foi apresentada à cocaína. Enquanto andava pelas ruas pedindo dinheiro para sobreviver e sustentar o vício, Anne conheceu seu marido. Lucas Martins da Silva, 22, era usuário de crack. "Fomos, então, morar na rua juntos porque eu passei a usar crack com ele". Na rua, os dois passaram a recolher materiais recicláveis na região do Brás. A história de Anne mudaria de rumo com a chegada de Melissa, sua filha com Lucas. No momento em que soube que estava grávida, ela decidiu abandonar as drogas. Depois de um mês, Lucas fez o mesmo.
Uma agente de mudanças Melissa nasceu em 2018. Anne, que morava em Osasco, Região Metropolitana de São Paulo, decidiu mudar-se novamente para o centro porque não conseguiria cuidar da criança com o que ganhava com a coleta nos bairros. "A reciclagem em bairro é muito pouca".
No abrigo em que conseguiu vaga no centro da cidade, não viu lugar para filha. De acordo com a prefeitura, 24.344 pessoas estão em situação de rua em São Paulo. Destas, menos da metade, 11.693, estão em centros de acolhida. Uma das justificativas para a baixa adesão, além da falta de vagas, é a sujeira dos abrigos, como mostrou essa reportagem do UOL. Depois do albergue, Anne se mudaria novamente, dessa vez para um barraco de madeira construído com as próprias mãos na favela Zaki Narchi, localizada na zona norte paulistana. O medo das condições do abrigo foi substituído pelo medo do fogo. Em julho de 2020 um incêndio tomou conta da favela. Cerca de 200 famílias ficaram desabrigadas.
"Eu não tinha o direito de tirar minha filha do conforto em que ela vivia com a avó para trazer ela para esse lugar. A gente que é adulto pode sofrer isso, com ela não é justo", explica Anne. A preocupação da mãe tem um agravante, a covid-19. Assim que nasceu, Melissa foi diagnosticada com Tetralogia de Fallot, uma condição rara que, entre outras coisas, causa uma incapacidade no coração de mandar oxigênio para o organismo. "Nossa filha está em um grupo de alto risco", conta Anne. Apesar de se expor todos os dias em seu trabalho pelas ruas da cidade, Anne ainda não foi vacinada e só conhece um catador que o foi. Em nota enviada a Ecoa, a Prefeitura de São Paulo informou que "foram imunizados todos os coletores e profissionais que trabalham com Resíduos de Saúde (RSS) na capital. A abertura de novos grupos depende da chegada de novas doses de vacina, enviadas pelo Ministério da Saúde aos Estados que repassam aos municípios"
O fato de se expor todos os dias em seu trabalho com a reciclagem, fez a catadora se ver afastada da filha, em 2021, pelo segundo ano consecutivo no Dia das Mães. Para driblar a tristeza, então, Anne apostou na empatia e assim nasceu o Perfumador. "Tem muita mãe em situação de rua que, assim como eu, não pode dar um teto para os seus filhos e filhas, então decidi que ia ajudar essas mulheres"
Anne se lembrou dos dias que vivia na rua e como se maquiar a ajudava a "acender a chama da dignidade". Quando reciclava e achava um batom ou um perfume se sentia recuperada e com a autoestima elevada. "Então eu pensei em fazer isso nesse dia, eu poderia levar um pouco desse sentimento para essas mulheres também". Com a ajuda de doações, ela conseguiu fazer 78 kits com cosméticos. A meta, agora, é conseguir doação suficiente para distribuir novos kits semanalmente..
"O lixo não existe" Nas redes sociais, Anne conquistou visibilidade também conscientizando quem a segue sobre o trabalho de catadores. Segundo o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), os catadores coletam 90% de tudo que é reciclado hoje no Brasil. Dado que ela gosta sempre de citar. E tem mais! Com 83% dos brasileiros sem acesso ao sistema público de coleta seletiva, o trabalho de catadores se torna ainda mais essencial para a limpeza das ruas da cidade. No entanto, a categoria não é entendida como profissional. Para Anne, isso seria fundamental para que se diminuísse o preconceito que catadores e catadoras sofrem.
"A sociedade está deixando de ficar doente por conta do trabalho do catador. Não é só um trabalho de limpeza urbana, é um trabalho de saúde. Sem reciclar, o resíduo pode parar nos lençóis freáticos e poluir a água que sai da sua torneira. A gente tem que mostrar para as pessoas a importância da reciclagem", comenta. Mesmo com o trabalho de 800 mil catadores e catadoras, como aponta o MNCR, a taxa de reciclagem no país ainda é bastante baixa. Só 3% de todo o resíduo produzido é reciclado. "Eu falo que a reciclagem começa a partir do momento em que a gente entra no supermercado e escolhe o que vai consumir. Precisamos escolher uma embalagem que pode ser reciclada", explica Anne.
"A gente pode trocar vidro e plástico por latinhas porque o índice de reciclagem de alumínio do Brasil é o maior do mundo. A gente pode escolher papelão ao invés de plástico. Essas coisas estão na nossa mão, e a reciclagem começa aí" Anne Caroline, catadora de recicláveis
Dicas da Anne.
Por onde começar a reciclar?
"Não precisa se apegar muito aos detalhes. Comece separando o orgânico do seco. Faz uma lixeirinha só para orgânicos e outra só para reciclável. E aos poucos vai se informando mais, querendo saber sobre as embalagens que você consome, porque na hora do descarte você já vai saber se o material é ou não reciclável" Como descartar vidro quebrado? "Pegue uma garrafa pet, corte-a no meio, coloque este resíduo de vidro dentro e lacre a garrafa. Como o pet é transparente, o catador vai poder ver o que tem ali dentro e não vai correr o risco de se machucar. Muita gente tem o hábito de embrulhar o vidro e colocar um papel escrito dizendo que há ali vidro quebrado mas muitos catadores não sabem ler e podem acabar se machucando".
E as pilhas e baterias?
"Esses materiais contaminam o solo com metais tóxicos, então precisam ter o descarte correto. Existem lojas onde se pode descartar pilhas e baterias. Geralmente, lugares que coletam eletrônicos coletam pilhas e baterias também".
Fonte : uol